Por Carolina Mandel e Stella Fontes | De São Paulo
Um velho problema para as incorporadoras imobiliárias, as desistências da compra de imóveis na planta os chamados distratos ganharam contornos ainda mais preocupantes para as empresas do setor. Uma avalanche de processos judiciais movidos por consumidores que buscam ressarcimentos acima do previsto em contratos tem agravado a situação financeira já frágil das companhias.
“Os resultados das empresas estão sendo muito machucados por decisões relacionadas a ações de consumidores”, diz Maria Fernanda Menin T. de Souza Maia, diretora jurídica da MRV Engenharia. “As incorporadoras têm dificuldade de tratar contingências por causa da imprevisibilidade.” Pelos cálculos do setor, para cada dois imóveis vendidos pelas incorporadoras, praticamente um foi devolvido em junho.
Um ano atrás, o índice ia de 30% a 35%. A escalada tem dois motivos. Um deles é o aprofundamento da crise econômica no bolso do consumidor, que opta pela devolução e, muitas vezes, pela via judicial. Esses imóveis também foram comprados em um período de crédito abundante, quando as vendas das incorporadoras estavam em alta. Agora é que essas obras estão sendo entregues.
Não existem números precisos sobre essas ações, mas alguns dados ilustram o tamanho do problema. A MRV tem 22.894 processos cíveis, que incluem a discussão de temas como distratos e atraso na entrega de obras. Se cada ação corresponder a um imóvel vendido, esse volume é 38% superior ao número de apartamentos vendidos no primeiro semestre deste ano. Desse total, a empresa considera que pode perder 5.018 processos, para os quais já reservou em seu balanço R$ 64,5 milhões.
Para fazer frente às ações que se avolumam, as companhias têm separado mais recursos. A PDG tem R$ 479,6 milhões apartados para ações cíveis cuja perda a empresa considera provável. O volume, equivalente a 64% das vendas brutas da companhia no primeiro semestre deste ano, é 30,75% superior às reservas que existiam no fim do ano passado. Rossi e Viver também fizeram reforços de 20,8% e 40%, respectivamente.
“As ações dos consumidores têm peso para todo o mercado, porque cortam receita de forma importante e geram um passivo enorme”, afirma o advogado Eduardo Takemi Kataoka, sócio do escritório Galdino, Coelho, Mendes Advogados, que está à frente da recuperação judicial da Viver.
Quando adquire um imóvel, o comprador assina um contrato que já traz a previsão de reembolso em caso de devolução do apartamento à incorporadora. Descontentes, porém, com o valor do ressarcimento, muitos consumidores optam pela via judicial, na tentativa de engordar a cifra devolvida.
Segundo Marcelo Tapai, advogado que se especializou no direito imobiliário do consumidor, os valores de reembolso variam muito, com retenções por parte das incorporadoras que vão de 20% a 50% do valor pago. “As cláusulas são abusivas. O que pedimos é uma retenção de, no máximo, 10% a 15%.” Em seu escritório, Tapai cuida de 4.000 ações em São Paulo. Aberto em 2015, o escritório do Rio tem outros 350 casos.
Para fisgar o comprador que quer devolver o imóvel, a Associação dos Mutuários de São Paulo e Adjacências (Amspa) criou em seu site um vídeo que explica didaticamente o que ele pedir na Justiça.
Como é de se esperar, a atuação dessas firmas especializadas nas causas de consumidores recebe críticas das incorporadoras. Estas, por sua vez, também consideram os contratos abusivos. Conforme relatos ouvidos pelo Valor, os advogados têm ido buscar potenciais clientes em visitas a condomínios e canteiros de obra. Tapai e Amspa negaram esse tipo de ação.
O argumento das incorporadoras contra as decisões judiciais que mudam os contratos é que as penalizações financeiras servem para que os valores retidos façam frente às despesas com a obra.
Nos últimos dois anos, diz Maria Fernanda, da MRV, houve crescimento no número de ações de duas naturezas: distratos e por atrasos da obra. Em determinado momento, o setor como um todo sofreu com problemas de escassez de mão de obra e de insumos por causa do excesso de projetos em execução, o que levou ao não cumprimento dos cronogramas previstos em diferentes projetos.
No caso dos distratos, explica o diretor geral da Alvarez & Marsal, Luis de Lucio, há o efeito da crise no bolso do consumidor, que deixa de ter liquidez para honrar o compromisso assumido. Mas a figura do investidor também está presente nos números relatados pelas incorporadoras. No passado, comprar imóveis na planta para vendê-los depois da entrega podia gerar ganhos expressivos. Com a mudança de cenário econômico, a opção pelo distrato entrou no cardápio do investidor.
Há outros fatores que têm pressionado o caixa das incorporadoras. A venda de ativos para cobrir passivos financeiros em geral tem ocorrido a preços que não são adequados. O presidente de uma incorporadora de grande porte afirmou ao Valor que tem vendido imóveis a preço de custo para fazer frente às dívidas financeiras. Além disso, empresas que já estão em situação delicada e buscam renegociar sua dívida não têm conseguido estabelecer bons termos com os bancos.
Para De Lucio, a rescisão deve seguir em alta. “Hoje, o distrato é o que mais incomoda, mas ele é mais uma consequência da crise.”
Fonte: Jornal Valor Econômico